Para quem não sabe, a quantidade de água no nosso planeta sempre foi a mesma, tendo um ciclo permanente a que chamamos de “hidrológico”, no qual a água se encontra nas três fases: sólida, líquida e gasosa. Contudo, o grande problema que se coloca nesse tema é que a presença do homem, no planeta, se incompatibilizou com o precioso líquido, ao colocar demandas e pressões de todos os gêneros sobre as reservas aquíferas, especialmente nas águas interiores, doces, superficiais e subterrâneas, que correspondem, aproximadamente, a 2,5% de toda a água que existe no planeta que, como se sabe, é composto por grandes oceanos onde reside a maior parte da água.
O professor e especialista José Galizia Tundisi*, do Instituto Internacional da Água, afirma que existem grandes problemas relativos à quantidade de água no planeta, devido à incidência das atividades humanas e aos usos competitivos da água, diretamente ligados às águas doces e interiores, tanto superficiais, quanto subterrâneas, mas também há um problema muito sério de qualidade do líquido, que se traduz no conjunto de substâncias químicas e especificações que constituem todo o processo natural, pelos quais a composição química da água ocorre.
Na palestra ocorrida no dia 24 de setembro, no Auditório Prof. Sérgio Mascarenhas (IFSC-USP), no já conceituado programa “Ciência às 19 horas”, Tundisi manifestou sua preocupação em face à deterioração progressiva da água, ocorrida principalmente a partir dos últimos cento e cinquenta anos, especialmente relacionada à existência de metais pesados, substâncias radioativas e tóxicas em geral: com isso, a ameaça é séria quando se diz que a disponibilidade de água está cada vez menor, uma vez que esta qualidade deteriorada implica em custos mais elevados no tratamento, ou até na acessibilidade ao precioso líquido.
Por outro lado, segundo Tundisi, as águas deterioradas têm impactos na saúde humana e, consequentemente, isso também se tem agravado ao longo dos anos. Em face de uma situação muito complexa, já que, adicionadas a essas problemáticas, existem também as mudanças globais que têm produzido desequilíbrios ecológicos, pode-se afirmar que o ciclo já não é o mesmo do passado, com profundas alterações detectadas em algumas regiões em que chovia normalmente, como no caso das nossas, no Brasil, onde tínhamos 1500 milímetros por ano, comparando, por exemplo, com este ano de 2014, em que tivemos, até agora, 1200 milímetros. Existe, de fato, um desequilíbrio ecológico, com grandes volumes de água de precipitação em algumas regiões, e secas severas em outras. Então, todo esse conjunto nos leva a uma situação de extrema vulnerabilidade da espécie humana, com relação à água, explica Tundisi.
Todavia, ainda existe outra componente que não está muito bem clara, quer para os economistas quer para a população, que é a questão de se saber qual é a quantidade de água que é necessária para manter o planeta funcionando, sem que se leve em conta os usos múltiplos da água pelo homem – a água necessária para manter os ecossistemas, para manter as plantas, para as atividades humanas, enfim, para manter todos os ciclos. É uma questão importantíssima ainda não respondida, até porque isso é o que mantém o fluxo da vida e dos nutrientes, o que agrava o sentimento de preocupação dos especialistas. A situação é bastante preocupante e é preciso que se tomem providências muito rápidas, no sentido de conservar mais água e, além disso, utilizar menos água nos volumes diários e em todas as atividades da água, sua reciclagem e reutilização. São medidas que devem ser tomadas de forma muito rápida, para que essa situação não se agrave, alerta nosso entrevistado.
Com o planeta sendo agredido dessa forma, o Brasil acaba por sofrer consequências diretas graves, já que, como já dissemos acima, o país possui áreas onde chove muito e outras onde não chove absolutamente nada, causando impactos negativos à sociedade e à economia. Será que essa disparidade poderá ser atenuada ou resolvida, politicamente? Para Tundisi, a resposta é afirmativa, desde que a diminuição ou resolução do problema passe por um processo de gerenciamento de alto nível, que envolva atividades e projetos estratégicos para o país. A solução do problema está além de qualquer ideologia política. É um projeto estratégico nacional do qual depende muito o futuro do país. Repare nas consequências desta seca de 2014, que ainda não são conhecidas em todos os seus contornos e em todas as suas diferentes rotas. Por exemplo, a falta de água levou a hidrovia do Tietê a ficar paralisada e isso teve como consequência um corte de cinco mil postos de trabalho, já para não falar nos imensos transtornos logísticos e aumento dos custos causados pela falta de transporte de milhões de toneladas de grãos que eram transportados por essa hidrovia e que hoje são transportados por terra, sendo necessários dez mil caminhões para deslocar esse mesmo volume de grãos. Ou seja, há um complexo problema de economia, poluição e contaminação e, portando, os efeitos diretos e indiretos de todo esse conjunto problemático não são conhecidos, complementa o pesquisador. Grave, também, é o fato da população ainda não ter compreendido a complexidade de todo esse problema, resumindo a questão à falta água nas casas, quando o assunto mais sério é a saúde pública, entre outros fatores relacionados com a qualidade de vida.
Tomando o exemplo de Israel, que conseguiu implantar medidas efetivas de gerenciamento de água através de grandes investimentos, de ciência e tecnologia de ponta, o Brasil também já poderia ter alcançado meta semelhante, segundo nosso entrevistado, se tivesse investido mais. Por exemplo, Israel investiu muito na dessalinização da água do mar e na construção de dutos para transporte e circulação de água, medidas essas que resolveram os sérios problemas que existiam, por exemplo, para o cultivo de plantas em áreas áridas. Inclusive, Israel tem tanques-rede de peixes em pleno deserto, com água dessalinizada, ou seja, há um investimento em tecnologia, que é preciso ser pensado para o Brasil, focando em duas vertentes importantes: a primeira é o investimento em tecnologias, em novas formas de tratamento de água e outros mecanismos, e, a segunda, a perspectiva de investimento em hard-science referente à água, como, por exemplo, a dessalinização, aplicando nanotecnologia ou outras novas tecnologias que permitam baixar os custos da dessalinização, não estando descartada a transposição (bem feita) de águas entre bacias, algo que é muito comum em países como China e Índia. Isso tem ajudado a minimizar os impactos da escassez, pontua Tundisi.
Na opinião do pesquisador, o Brasil tem que investir pesadamente em ciência e tecnologias voltadas à água, não só para conhecer os sistemas aquáticos e todos os seus funcionamentos, mas principalmente para resolver e solucionar problemas de abastecimento, de usos competitivos etc. Contudo, Tundisi admite o sucesso alcançado pelo Brasil no que diz respeito à governança da água. Nós temos uma lei avançada relativa aos recursos hídricos, aprovada em 1997, que tem um papel importante, porque ela sinaliza claramente a gestão por bacias hidrográficas e isso tem estimulado os comitês de bacias, fazendo com que a governança da água tenha melhorado bastante, mas mesmo assim é preciso que esses comitês sejam instrumentalizados por bases tecnológicas e científicas, de tal forma que eles possam, a partir daí, fazer um planejamento estratégico para cada bacia. O ideal é que estivesse bem clara e definida a disponibilidade, a demanda presente, demanda futura e os usos múltiplos de cada bacia hidrográfica, tendo em vistas as populações que cada uma delas serve, no sentido de se fazer um planejamento de longo prazo, incluindo todo esse conjunto de usos múltiplos, mudanças globais e escassez, para que se pudesse realmente ter uma gestão das águas, de uma forma mais adequada, completa o entrevistado, acrescentando que se existe uma crise de água no planeta e uma crise de governança, será necessário conciliar as duas, por forma a se atingir patamares mais adequados de disponibilidade de água.
Quanto ao processo de dessalinização, o professor Tundisi alega que, se ele fosse implementado no Brasil, resolveria, por exemplo, a problemática existente em todo o litoral nacional e, com isso, haveria água suficiente para abastecer o interior. Embora as preocupações sejam latentes, o certo é que ainda existe esperança. Temos água suficiente no Brasil, só que essa água não está bem distribuída. Enquanto na Amazônia tem um rio que descarga 225 mil metros cúbicos de água por segundo, diretamente no Oceano Atlântico, com uma população escassa, o sudeste tem uma população muito maior e muito mais atividade econômica e muito menos água disponível.
*José Galizia Tundisi é, atualmente, professor titular aposentado da Universidade de São Paulo e atua na pós-graduação da Universidade Federal de São Carlos, orientando mestres e doutores. É presidente da Associação Instituto Internacional de Ecologia e Gerenciamento Ambiental (IIEGA) e pesquisador do Instituto Internacional de Ecologia (IIE).
É professor convidado do Instituto de Estudos Avançados da USP e professor titular da Universidade Feevale (Novo Hamburgo RGS), atuando no curso de pós-graduação em Qualidade Ambiental. É membro titular da Academia Brasileira de Ciências e do “staff” do Ecology Institute- Excellence in Ecology ( Alemanha). É especialista em Ecologia, Limnologia, com ênfase em Gerenciamento Recuperação de Ecossistemas Aquáticos.
Atuou como consultor em 40 países nas áreas de Limnologia, gerenciamento de recursos hídricos, recuperação de lagos e reservatórios e planejamento e otimização de usos múltiplos de represas. Atualmente, dirige programa internacional mundial de formação de gestores de recursos hídricos para o IAP (InterAcademy Panne l- que representa 100 Academias de Ciências), sendo consultor de vários Projetos de Gestão de Recursos Hídricos a cargo do Instituto Internacional de Ecologia e de Gerenciamento Ambiental.
Tem 30 livros publicados e 1 livro no prelo, foi presidente do CNPq – Brasil (1995-1999) e presidente do projeto Institutos do Milênio. Tem 320 trabalhos científicos publicados e prêmios no Brasil no exterior.
Orientou 40 mestres e 35 doutores nas áreas de Ecologia, Limnologia, Oceanografia, Gestão de Recursos Hídricos e Gestão Ambiental. Foi assessor do Ministro de Ciência e Tecnologia, Ronaldo Sandenberg, de 1999 à 2001. Foi presidente do Programa Institutos do Milênio do Ministério de Ciência e Tecnologia. Em 1999, fundou a Secretaria Municipal de Ciência e Tecnologia e Desenvolvimento Econômico em São Carlos.
(Rui Sintra – jornalista)