Divergência, conflito e violência
O já tradicional programa Ciência às 19 Horas regressou ao nosso Instituto, com a primeira edição de 2015, que ocorreu no final da tarde do dia 17 de março, com a participação da Profa. Dra. Eda Terezinha de Oliveira Tassara, docente e pesquisadora do Instituto de Psicologia e do Instituto de Estudos Avançados, da Universidade de São Paulo, que abordou um tema que se insere perfeitamente na atualidade do maundo e de nosso país: Divergência, conflito e violência.
Com efeito, vem sendo um consenso, entre cientistas sociais, rotular a atual sociedade brasileira de anômica, dado o isolamento e as dificuldades para uma comunicação direta que se manifesta entre seus cidadãos; segundo o resumo da palestra, tais atributos exteriorizam-se como disruptores do adequado funcionamento do convívio sócio-comunitário, emergindo sob forma desordenada de conflitos de várias ordens, os quais evoluem, muitas vezes, para confrontos e tensões violentas.
Argumenta-se que, em situações de anomia e alienação, a violência resulta de dificuldades advindas de fluxos desconexos de comunicação, impossibilitando a identificação, pelos grupos sócio-comunitários, da origem lógico-cognitiva, psicológica-afetiva ou ético-política das eventuais divergências. Assim, passam as mesmas a alimentar conflitos face à heterogeneidade de repertórios pregressos dos indivíduos pela precariedade dos processos de socialização aos quais são submetidos, agravada, em via de mão-dupla, pelas suas inscrições em situações de anomia e alienação.
Em conversa mantida com a palestrante, um pouco antes de sua apresentação, quisemos saber de que forma ela interpreta o fato de muitos cientistas sociais considerarem a sociedade brasileira de anômica. Para Eda Tassara, que desde há muito tempo desenvolve pesquisa efetiva no campo social, o conceito de anomia é bastante adequado para interpretar o que se enxerga, tendo dado o exemplo de Émile Durkheim, que desenvolveu um estudo mais sistemático sobre a questão anomia. Ele trabalhou duas grandes obras; a primeira, discutiu a divisão do trabalho social e, nessa primeira leitura, ele tem uma posição mais otimista, considerando que nas épocas de grandes transformações, existe, quase como que uma ruptura entre as formas de vida culturalmente estabelecidas e os meios institucionais para conseguir realizá-las. Depois, já bastante mais tarde, desenvolveu uma outra obra sobre o suicídio, com um viés muito mais pessimista, salienta a pesquisadora.
De fato, Durkheim antecipou, em sua primeira obra, a necessidade do aparecimento de uma reordenação da sociedade que, espontaneamente, tenderia a um equilíbrio dessa ruptura. Ele escreveu isso em 1893, que era uma época de grandes transformações. Já na obra dedicada ao suicídio, ele não defendeu mais essa leitura, já que o número de suicídios havia aumentado muito nesse período. Outros autores trabalharam esta ideia da anomia, que é uma ideia -um conceito – sociológico, tendo alguns deles – principalmente os psicanalistas – começado a trabalhar rumo a uma fronteira que se situa entre as áreas sociológica e o psicológica, com uma significativa parte deles afirmando que a anomia interage com a alienação, produzindo sempre – porque então essa ruptura traz dificuldades de comunicação direta -, artifícios para comunicação; daí que o homem desse período se sentisse inerte, triste e vazio – um vazio existencial e uma dificuldade de enxergar o futuro, sublinha Eda, que compartilha essa leitura e que a interpreta como aquilo que se passa na sociedade brasileira e, particularmente, na sociedade paulista, neste último caso, o vetor primordial de suas pesquisas.
Se a divergência gera conflito e se esses dois aspectos geram a violência, o exponencial aumento de todos esses fatores que vemos e sentimos no nosso cotidiano, nos últimos anos, será, tão só, uma questão de ausência de comunicação entre as pessoas, ou é uma frustração individual que se explana coletivamente?
A Profª Eda Tassara defende a ideia de que esse acirramento da anomia ou das condições anômicas, advêm do presente momento do processo de globalização e isso está atingindo o mundo inteiro, mas de forma diferenciada, até porque há necessidade de se diferenciar globalização, de mundialização, já que a primeira se refere, principalmente, a um sistema econômico, a uma determinada forma de funcionamento, enquanto a mundialização está mais voltada para um encontro desse processo com as realidades sócio-culturais locais. De fato, mesmo contra diversas opiniões divergentes, o certo é que a hegemonia da globalização propagou-se de forma absoluta pelo o mundo e é muito difícil pensar-se em algo que tenha força capaz para suplantar isso. Então, esse encontro produz conseqüências anômicas e diferentes. Por exemplo, na Europa, não houve um desmonte do passado, no sentido dos cenários. Os cenários são formas das pessoas encontrarem seus passados, daí que algum passado fica. Então, o que se recuperou na Europa? Os ódios milenários. Por exemplo, eu fui muitos anos professora visitante em Pisa – Itália. Lá, a história está no espaço e isso não apaga. Mas, a anomia se produz menos destrutiva do passado, porque alguma materialidade fica. Então, o que ela trouxe à tona? Os ódios milenares, as tensões… Pode ver na Ucrânia… Tudo isso é explorado pela luta geopolítica. Mas, as sociedades reagem assim, pontua Eda Tassara, que exemplifica, também o caso de Portugal, um país que não é de ódio, mas que recupera o passado mais no convívio, embora exista também algum clima de desconfiança do não reconhecimento daquilo que é especificamente da história local.
Para a pesquisadora, nesse país irmão não existe uma tensão de violência, como há em outros lugares da Europa, mas há um sentido. Em São Paulo, por exemplo, o passado material é destruído, simplesmente não existe não existe na memória das pessoas. As novas gerações foram desalojadas de um passado cultural; não têm nem reminiscências. Os mais velhos têm, mas essas já vão desaparecendo. Eles não têm passado e o futuro está incerto.
Igualmente consubstanciado nesse exemplo, poderíamos voltar aos estudos de Durkheim, argumentando que essa população não está socializada. Durkheim falava que a educação é a socialização. Ora, se você não tem o passado, porque grande parte dessas populações não vinha de culturas letradas, mas sim de culturas tradicionais, tudo isso é muito difícil, quase inatingível. Por outro lado, temos outros países, como, exemplo a Inglaterra. A Inglaterra é muito esperta. Porque a Inglaterra adota o princípio do Príncipe de Salinas – é preciso mudar para tudo continuar como é, ao contrário dos paulistas, que não aprendem isso. Querem que os outros se adaptem. Não vão se adaptar, afirma a professora.
Em termos de futuro, Eda Tassara não arrisca fazer previsões. Segundo sua opinião, alguns acreditam que o capitalismo, da forma como se apresenta, está agonizando, algo que ela considera uma crença, um mito. Wolfgang Streeck, diretor do Max Planck Institut de estudos para a sociedade, fez uma análise que eu acho brilhante, no qual ele acredita nessa transformação, alegando o seguinte: ‘Nós temos que nos abstrair das teses dos modernistas, que achavam que você só pode substituir uma coisa quando sabe o que vai vir no lugar’. Isto, neste momento, não está acontecendo. Então ele afirma que está em desmantelo crônico, mas não temos – ele fala ‘não temos’, e eu falo ‘ não tenho’ – condições de pensar modernistamente. Ele diz que temos que aprender a pensar ‘se’. Mas pensar assim é, justamente voltando na anomia, uma coisa que o homem comum não consegue fazer, porque nós, aqui, somos pensadores. O homem comum não consegue pensar dessa forma, porque ele se sente incapaz. Ele se sente não-protagonista, ele não sabe como fazer para influir, por isso tem tantas manifestações caóticas, que são, do ponto de vista da psicanálise, formas maníacas de pensar que você está sendo protagonista, salienta Eda Tassara.
Quando assistimos a manifestações e protesto, quer elas ocorram na França, no Brasil ou em qualquer lugar no mundo, as pessoas agem como se fossem personagens de quadrinhos, ou seja, é um dadaísmo de massa, na opinião de Eda Tassara. Tinha um sujeito no protesto do dia 15 de março, em São Paulo, que colocou uma barba tipo do Lula e escreveu numa placa “Fora Marx de Garanhuns”; ou seja, o homem pensa, ele reflete, e assim como os pesquisadores opinam sobre anomia, ele também acha que enquanto houver refletividade, não há barbárie. O homem que sai e escreve uma palhaçada qualquer, está refletindo e, se não tem sentido para quem pensa, isso não tem importância; o que interessa é que naquele momento ele quer ser protagonista, ele quer influir. Seguramente não vai influir em nada, ou irá influir para alguns.
Para a pesquisadora, o homem médio, não letrado, sente-se infeliz, sente-se existencialmente vazio e isso é um fato. O espírito público não se transmite mais.
Rui Sintra – jornalista