O público em geral idealiza os cientistas como se fossem extraterrestres, ou ratos de laboratório, com pouco contato com o mundo exterior. Um estereotipo que não coincide com a verdade, já que eles são de carne e osso como todo o mundo, com seus defeitos e virtudes, vícios e manias. Foi devido a alguns desses mitos que o programa Ciência às 19 Horas, recebeu, no dia 7 de outubro, o Prof. Dr. Roberto de Andrade Martins, docente e pesquisador da Universidade Estadual da Paraíba, que apresentou a palestra intitulada Pesquisadores não são anjos: uma controvérsia científica do Século XIII com Maupertuis, Voltaire, Euler e o rei Fréderic II, um tema que, de interpretação lata, continua atual, já que apresenta um aspecto extremamente humano da pesquisa científica. Ou seja, a história de pessoas que, embora distantes centenas de anos, lutam por sua reafirmação, lutam pelo poder, fazendo coisas que às vezes não são muito corretas do ponto de vista acadêmico, como copiando ideias dos outros e utilizando a falta de ética, por exemplo.
Na história apresentada por Roberto Martins, o pesquisador mais importante envolvido nela é Maupertuis, cientista francês que propôs o princípio de ação mínima na área da física, que na atualidade é um dos princípios básicos da área, sendo usado na física clássica e também na moderna – relatividade, teoria quântica, etc.: ou seja, é considerado como um dos princípios mais importantes da física. Quando Maupertuis apresentou esse princípio, propôs uma ideia e escolheu alguns exemplos para aplicá-la, tendo forçado bastante a situação, por forma a que os seus princípios dessem certo. Não foi o primeiro cientista que já apresenta algo pronto. Na verdade, o princípio que ele propôs estava errado, tendo sido posteriormente discutido por pesquisadores importantes, como d’Alembert, que apontou uma falha importante que invalidava a generalização que Maupertuis fazia na época, elucida Roberto Martins.
De fato, a atitude de Maupertuis era discutir algumas das críticas que dirigiam a ele, fingindo não ouvir outras, como as do d’Alembert, que eram irrespondíveis. Maupertuis estava se baseando em ideias de outras pessoas que ele não cita. Na época em que defendia esse princípio, Maupertuis era presidente da Academia de Ciências da Prússia, em Berlim, e o Leonhard Eules, que era suíço, estava também na Academia, sendo subordinado a ele. Na verdade, Euler já tinha desenvolvido uma versão muito melhor desse princípio, mesmo antes de Maupertuis, que citava o trabalho de Euler como sendo uma aplicação do seu próprio trabalho: e Euler concordava com essa situação, já que ele não podia desagradar o presidente da Academia, explica Roberto Martins. A sequência dessa história relata que após essa situação, o matemático Samuel Köenig, que inicialmente era amigo de Maupertuis, visitou-o em Berlim, manifestando sua discordância com o princípio, mostrando ao amigo um rascunho de um artigo que ele queria publicar, criticando seu trabalho, questionando-o se ele se ofenderia com essa publicação. Não temos uma documentação muito clara sobre isso, mas, aparentemente, no dia seguinte a esse encontro com Köenig, Maupertuis devolveu o manuscrito a ele, alegando que poderia publicar o que quisesse. Samuel Köenig publicou a citada crítica, que teve uma repercussão enorme na comunidade acadêmica, inclusive, porque ele mostrou que o Leibniz havia proposto, há anos, um princípio mais geral e mais correto do que o inventado por Maupertuis, pontua o pesquisador. Conta a história que Maupertuis se enfureceu e resolveu destruir a reputação e a imagem de Köenig, que não tinha uma situação acadêmica tão confortável, pedindo, inclusive, que academia o julgasse, o que acabou por acontecer. Como resultado, Köenig foi humilhado e ridicularizado, como se ele tivesse falsificado documentos de Leibniz, o que não foi verdade, iniciando-se aí uma situação que polarizou os pesquisadores na época, com um lado a se posicionar contra e outro a defender Köenig.
Foi nesse momento que Voltaire entra na história. Amigo muito próximo de Köenig e Maupertuis, Voltaire estava em Berlim naquela época e resolve apoiar Köenig, publicando panfletos anônimos satíricos ridicularizando Maupertuis, criando, assim, um escândalo geral, o que provoca a entrada do Rei no confronto ideológico. Frederico e Voltaire eram amigos muito íntimos, mas Frederico interpretou o ato de seu amigo como um abuso desmedido, já que ele estava atacando o presidente da Academia. Frederico adverte seu amigo, pedindo para que ele sumisse com os panfletos e parasse com as ações, mas Voltaire continua, dessa vez enviando os citados panfletos para fora da Prússia, o que irritou profundamente o Rei, obrigando o mesmo a ordenar que os panfletos fossem imediatamente recolhidos e queimados em praça pública, pelo carrasco real. Finalmente, Voltaire se deu conta que o Rei falava sério e que sua vida poderia ficar em perigo. Impedido de sair da Prússia, por ordem do Rei, Voltaire acabou preso em uma cidade limítrofe e foi encarcerado durante várias semanas, acabando por se refugiar na Suíça, onde acabou por morrer. Apesar de tudo, Voltaire tinha conseguido ridicularizar tanto o Maupertuis, que ele conseguiu ser motivo de zombaria em toda a Europa toda, nunca tendo se libertado disso, fato que o afastou definitivamente da ciência.
O que aconteceu com Eule
Eule sempre foi um matemático muito importante, publicava muito, mas nunca quis não se envolver nas discussões e na confusão que acabamos de relatar acima. Contudo, ele acabou por apoiar Mauterpuis e, inclusive, preparou o dossiê de acusações contra Köenig, defendendo que ele era um falsário. Eule fez todo o jogo de Mauterpuis, e quando este ficou doente, incapacitado de continuar como presidente da Academia, provavelmente Eule acreditou que seria o próximo presidente, pelo fato de ser o braço direito de Mauterpuis, mas isso não aconteceu. Eule acabou se dando mal lá e partiu para a Rússia. Todo mundo acabou mal. O Rei Frederico também acabou mal porque, no fim, perdeu Voltaire, que era considerado a pessoa mais importante da vida dele, que inclusive era considerado o ponto de referência e cultural do Rei, todos se deram mal, complementa o pesquisador. A questão dos interesses pessoais se sobreporem aos interesses científicos e prejudicarem o trabalho científico são as duas lições mais importantes, segundo Roberto Martins. Ao invés de as pessoas estarem realmente querendo saber se tal ideia é correta ou não, se existem limitações, ou não tem, tem vezes que os egos e os interesses ficam acima disso. No caso de Euler, não era bem seu ego, era o interesse de manter a posição dele e receber atenção na academia de ciências. O Rei também não queria a verdade, só queria apoiar politicamente o presidente, entre outras coisas. Será que Voltaire queria a verdade? Provavelmente, também não, já que o seu principal foco era desmascarar Maupertuis, finaliza Roberto Martins, acrescentando que na atualidade, não é raro acontecerem episódios semelhantes.
(Rui Sintra – jornalista)