Na última palestra de 2016, inserida no programa Ciência às 19 Horas, coube ao Prof. Dr. Olival Freire Jr., docente e pesquisador da Universidade Federal da Bahia (UFBA) dissertar sobre o tema Das margens para o centro: A história da segunda revolução quântica. O título desta palestra foi propositalmente enigmático, remetendo para aquilo que alguns chamam de 2ª revolução quântica, que, na verdade, é um conjunto de conceitos e técnicas que se tornaram disponíveis nos anos 60, 70 do século XX, em contraposição com a primeira revolução que aconteceu no início desse mesmo século.
Essa 2ª revolução quântica, que teve enormes impactos na ciência e que promete outros ainda maiores, promete uma alteração no modo de processamento na área de informação quântica. De fato, segundo o palestrante, são apenas promessas. Essa área de informação quântica é hoje uma área da física muito quente, já que aconteceram atividades que foram desenvolvidas às margens da física. Não eram atividades, nem pesquisas muito bem valorizadas ou consideradas: eram pesquisas que trabalhavam com teorias chamadas heterodoxas, que na física podem representar o final da carreira de um jovem físico – se ele se dedicar excessivamente a trabalhos desse tipo, por exemplo.
A ideia de margem e centro é muito usual na ciência, para distinguir o que é mainstream, como explica Olival Jr: O que significa aquela agenda de pesquisa que é perfeitamente bem valorizada numa comunidade científica e o que é que são os temas que não são muito bem considerados, por razões diversas? Procuro sempre argumentar que parte dos conceitos essenciais do que chamamos de 2ª revolução quântica foi formulada num contexto de controvérsias, num contexto em que alguns desses proponentes eram muito mal considerados na comunidade dos físicos, na comunidade científica. Hoje, são altamente bem considerados, recebem premiações e tudo mais. Mas, por que o meu interesse nisso? Não é propriamente um interesse de trazer à luz alguém que foi valorizado na sua trajetória, embora isso seja importante, mas acima de tudo também valorizar e destacar, na ciência, aqueles que, no seu devido tempo, não tiveram destaque. Mas, o meu principal interesse é mostrar que esse é um bom caso para a gente compreender o quão complexa é a atividade científica. Então, ele, para mim, serve como um bom argumento contra qualquer visão simplista do que seja a atividade científica. O que é que eu chamo de atividade simplista? Tipicamente você pensa Não! Ciência é você fazer os dados experimentais, a partir daí extrair uma teoria e por aí afora. Não é assim. Ciência envolve muita conjectura, muita imaginação. Ciência tem uma atividade com uma dimensão social: o modo como você, jovem estudante, se relaciona com os seus colegas, o modo como você entra numa controvérsia. Então, o desenvolvimento da história da ciência, portanto, é um fenômeno tão complexo quanto os fenômenos complexos que a própria ciência estuda, enfatiza o pesquisador.
Quando se fala em renovação da pesquisa sobre os fundamentos da física quântica, isso tem muito a ver com a pergunta anterior, ou seja – e uma vez mais -, das margens para o centro. O palestrante gosta de citar um tema que, tipicamente, estava nos fundamentos da teoria quântica e que, por altura dos anos 50, era considerado um tema morto na ciência, um tema do qual ninguém iria extrair nada interessante. Então, qual era o tema? O tema era o seguinte: será que você pode alterar/modificar a teoria quântica, introduzindo mais variáveis? Essas variáveis são chamadas de variáveis escondidas – que para o palestrante é um nome péssimo, mas que se consagrou na literatura: escondidas em relação às que já são usadas pela teoria.
Será que você pode introduzir essas variáveis adicionais e, mesmo assim, preservar o poder preditivo da teoria quântica? E se você introduzir, isso trará alguma informação nova? Esse tipo de tema era completamente fora do escopo da física, na altura da década de 50. Poucas pessoas brilhantes se preocupavam com isso, sendo que o mais notável deles era Einstein. Na década de 50, outro notável também se dedicou a isso – David Bohm. Certamente, esse era considerado um tema de filosofia. Portanto, um tema fora da física. E foi justamente em torno desse tema que surgiu, quinze anos depois, o chamado Teorema de Bell, um teorema que estabeleceu com precisão quais alterações poderiam ser feitas na teoria quântica, sem a comprometer, e quais alterações que, ao serem feitas, colidissem com a própria teoria quântica. E o Teorema trouxe uma surpresa fenomenal. A surpresa é que, na altura em que ele começou a ser compreendido, no final dos anos 60, se percebeu que não existia um único teste já feito que permitisse fazer aquele contraste previsto pelo Teorema. Então você teve, a partir do início dos anos 70, uma série de experimentos que continuam ainda hoje… esses experimentos todos confirmaram as predições da teoria quântica e, portanto, invalidaram o tipo de teoria modificada que o próprio Bell tinha expectativa… mas o resultado de todo esse processo foi a consolidação, entre os físicos, de um novo fenômeno físico, chamado Emaranhamento Quântico. E é exatamente o Emaranhamento Quântico que é uma das propriedades centrais hoje, na pesquisa em informação quântica. É uma revolução nesse sentido… de uma posição marginal para uma posição muito importante na agenda de pesquisa dos físicos, sublinha Olival Jr..
No resumo de sua palestra, o Prof. Olival Freire Jr. optou por mencionar a frase revolução quântica, em vez de ter escolhido atualização, ou mesmo mudança. Para o palestrante, essa escolha teve o intuito de provocar, mas provocar no sentido delicado. Profissionalmente, eu sou historiador da ciência, mas graças à minha formação em física, ensino essa disciplina, mas meu doutorado foi de história da ciência e, portanto, eu trabalho sistematicamente nessa vertente. Portanto, como historiador da ciência, uso com muito cuidado o termo revolução científica, mesmo para me referir a revolução que todo mundo acha que foi uma revolução lá do Galileu, do Newton… A história da ciência mostra que teve muitos elementos de continuidade entre a física do final do período medieval e a física do Galileu. O problema não foi tão revolucionário quanto pensamos. Então, eu profissionalmente me contenho. Mas eu precisava atrair um pouco a atenção. Mas aí você vai ver que no resumo, eu disse que o termo “revolução quântica” não é meu, mas sim de um grande físico que tem relação com o Instituto de Física de São Carlos, que é o Alain Aspect, que é colaborador do Prof. Vanderlei Bagnato.
Nesse caminho, Olival Freire Jr, está convicto que a divulgação científica se transformou numa atividade, não sem antes ter apresentado uma explicação: a atividade científica tem uma história maior do que se imagina, ganhou muita força nos últimos 40, 50 anos: Mas, já que falei do Galileu e do Newton, quero dizer que com toda a abertura que se teve no século dezessete para se pensar num universo maior, num universo infinito, ali já começaram as atividades de divulgação científica. E alguns desses divulgadores são grandes filósofos, grandes escritores. O Fontenelle foi um deles, mas um que eu gosto de citar é Voltaire. Voltaire tem uma explicação do que é a física newtoniana, que está traduzida em português. Ele sai da França e vai para a Inglaterra e se encanta com a liberdade que tinha nesse país. E com a mecânica newtoniana, ele ainda escreve uma obra. Pouco depois, todo o projeto da Enciclopédia, os chamados enciclopedistas – Encyclopédie -, dirigida pelo Jean le Rond d’Alembert, é um projeto de divulgação científica. Então, eu acho que, desde quando a ciência se tornou algo mais complexo ou pelo menos do século dezessete em diante, fazer com que o mundo da cultura, o mundo da arte, da literatura, o mundo do cidadão comum, compreenda o que se passa na ciência, quais são as ideias que estão presentes nela, na técnica, se tornou um desafio importante. Nos últimos 50 anos, aí eu diria particularmente depois da 2ª Guerra Mundial – porque acho que a 2ª Guerra Mundial mudou drasticamente a relação da ciência com a sociedade -, com a produção particularmente da bomba atômica, mas não só (a produção do radar também é um produto da 2ª Guerra), tudo isso colocou na ordem do dia a ideia de que a cidadania hoje requer que você tenha algum grau de informação sobre a ciência. E isso que eu estou dizendo não é uma ideia minha, mas de alguém que foi um dos reitores da Universidade de Harvard, um químico chamado James Conant, continua o palestrante, acrescentando que Conant, após a 2ª Guerra, participou do projeto Manhattan.
Quando acabou a 2ª Guerra, Conant passou a organizar cursos que eu chamaria de divulgação científica, mas eram cursos de história e filosofia da ciência, para os graduandos da Universidade de Harvard. Então, é nesse sentido que a divulgação científica é muito importante. No caso do Brasil, e também no resto do mundo, ela tem uma responsabilidade adicional. É que parte da ciência tem que ser financiada por recursos públicos. Se o público não entende o papel da ciência, o impacto da ciência na sociedade, o financiamento da ciência vira uma coisa de mecenas ilustrados. Nós temos exemplos importantes em que, no caso dos EUA, aquele super collider, aquele acelerador, que em 1993 o congresso americano tomou a medida de fechar porque não era importante. Aquilo ali, provavelmente, vai passar para a história, porque a obra já estava bem adiantada e ficou lá, abandonada. Também se discute que destino dar àquela obra fenomenal. Então, eu acho que a divulgação científica também tem essa dimensão. Se nós queremos que a atividade científica tenha continuidade no nosso país,é preciso que haja recursos públicos.Veja, eu estou em São Paulo e poderia falar do meu estado, que também não compreende muito bem o papel da ciência, mas recentemente nós tivemos um importante político em São Paulo que pôs em dúvida a importância das pesquisas financiadas pela FAPESP. Então, quando eu digo que a sociedade precisa compreender o papel da ciência, é porque, a sociedade, compreendendo, nossos representantes (no judiciário, no mundo político) também vão entender mais. E nesse sentido eu acho que vocês, aqui na USP de São Carlos, têm tido um papel muito importante de vanguarda nesse esforço de divulgação científica, conclui Olival Freire Jr.
(Rui Sintra – jornalista)