Palestra

16 de março de 2018

Somos especiais – não somos?

Somos a única espécie a estudar as outras, a modificar seu ambiente, a conquistar outros – até mesmo fora do planeta, por isso nossa capacidade cognitiva é sem igual. Por trás dessa capacidade cognitiva está um cérebro que, até recentemente, era considerado literalmente extraordinário: uma exceção às regras. Sete vezes maior do que esperado para o tamanho do corpo, custando 25% da energia que o sustenta (apesar de representar apenas 2% da massa corporal) e contendo o maior córtex cerebral em proporção ao cérebro; o cérebro humano parece de fato ser especial – sobretudo por ter alcançado seu tamanho atual em apenas 1.5 milhões de anos na evolução. Inúmeros dados colocam o cérebro humano em seu devido lugar: como um cérebro grande de primata, mas ainda assim, apenas mais um primata. O que explica nossa capacidade cognitiva ímpar seria um número de neurônios no córtex cerebral igualmente ímpar, inacessível a outras espécies e atingido na evolução humana devido a uma invenção exclusivamente humana: a cozinha!

Foi com base no resumo acima que o IFSC/USP recebeu, no dia 17 de agosto, a Profª. Drª Suzana Herculano-Houzel, docente e pesquisadora do Instituto de Ciências Biomédicas – Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que apresentou a palestra Somos especiais – não somos? Dezesseis bilhões de neurônios e o impacto da cozinha na evolução humana, integrada no ciclo Ciência às 19 Horas, que comemorou a centésima palestra do citado programa.

Suzana Herculano-Houzel é uma das mais conceituadas e notáveis neurocientistas do Brasil, amplamente conhecida no exterior. Criadora, em 2000, do site O Cérebro Nosso de Cada Dia, a paixão de Suzana Houzel por pensar no lado “cerebral” em tudo aquilo que a rodeia fez com que começasse, em 2006, a ter uma coluna periódica no jornal A Folha de São Paulo. O entusiasmo inebriante com que encara a neurociência e a paulatina descoberta dos caminhos e segredos que estão intimamente ligados ao cérebro humano, fez com que a cientista, inclusive, escrevesse seis livros até agora, a saber: O Cérebro Nosso de Cada Dia (Vieira & Lent, 2002); Sexo, Drogas, Rock and Roll… & Chocolate (Vieira & Lent, 2003); O Cérebro em Transformação (Objetiva, 2005); Por que o Bocejo É Contagioso? (Jorge Zahar Editor, 2007); Fique de Bem com seu Cérebro (Sextante, 2007) e Pílulas de Neurociência para uma Vida Melhor (Sextante, 2009).

Carioca de gema, Suzana Houzel dirige o Laboratório de Neuroanatomia Comparada, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e, além de fazer divulgação científica, é ainda musicista nas horas vagas. Formou-se em Biologia Modalidade Genética pela UFRJ (1992), tendo feito o mestrado pela universidade americana Case Western Reserve (1995), doutorado na França, pela Pierre et Marie Curie (1998), e pós-doutorado na Alemanha, pelo Instituto Max Planck (1999), todos em neurociências. Exerce o cargo de professora adjunta na UFRJ, desde 2002. Entrevistar Suzana Herculano-Houzel transforma-se rapidamente numa conversa entre amigos, tal é a descontração, alegria contagiante e informalidade transmitidas pela cientista que, quase sempre, ostenta um sorriso largo, um olhar que complementa a maior parte de suas frases e não raros rasgos de um humor quase britânico.

Quando confrontamos a cientista com a afirmação contida no resumo de sua palestra, de que o cérebro humano é sete vezes maior do que aquilo que se esperaria para o tamanho do corpo, ela é enfática ao afirmar que em geral, na natureza, quanto maior é o animal, maior é o cérebro, sendo isso uma constante suficiente para que se consiga expressar essa relação, matematicamente. Ou seja, de fato consegue-se predizer que para um animal, com um tamanho corporal X, qual será o tamanho esperado de seu cérebro. Fazendo essa relação para vários mamíferos, sejam eles de que tipo for, descobre-se que o humano está muito acima da reta, conforme explica a cientista: Isso quer dizer que, devido ao tamanho do corpo que a gente tem, supostamente deveríamos ter um cérebro grande demais. Acontece que, quando você faz essa mesma relação apenas para os primatas e, sobretudo, quando você retira os grandes primatas da relação, você vê algo complemente diferente, ou seja, que o cérebro humano tem o tamanho que você esperaria que ele tivesse, para o tamanho do corpo que a gente tem, como primatas.

Assim, o que está evidente é que os orangotangos são os grandes primatas que se afastaram dessa relação entre tamanho do corpo e tamanho do cérebro que vale para um primata e a explicação para isso é que eles, os grandes primatas, estão no limite do que conseguem sustentar metabolicamente, com o que comem diariamente. Eles não têm o cérebro grande o suficiente para o corpo que apresentam. Ou, ao contrário: talvez eles tenham um corpo grande demais para o cérebro que possuem. Mas, quando se considera que eles já passam perto do que se supõe que seja o número máximo de horas por dia comendo, muito provavelmente eles apresentam um cérebro que não consegue atingir o tamanho que eles supostamente teriam para o tamanho do corpo que os grandes primatas têm – ou seja, eles saíram da reta.

Já na constatação de que o cérebro humano consome 25% da energia produzida pelo corpo humano, a cientista elucida: Em média, se você medir pelo consumo de oxigênio quanta energia o nosso corpo custa para se manter vivo, dá em torno de duas mil calorias – embora possa existir uma certa variação. Através do consumo de glicose e oxigênio, só o cérebro custa cerca de quinhentas quilocalorias por dia, ou seja, ¼ do total. Assim sendo, 25% da energia que o seu corpo consome é, na verdade, consumida apenas pelo seu cérebro, o que é um fato impressionante, tendo em atenção que, em termos de massa, ele só representa 2% do corpo. Mas, em consumo energético, ele é 25%. Ele custa supostamente doze vezes mais do que deveria custar. Só que, quando você faz a conta por número de neurônios, você descobre que o custo energético de um cérebro – não importa se é de um primata ou de roedor – é simplesmente proporcional ao número de neurônios que tem naquele cérebro. E na hora que você faz as contas, descobre que o cérebro humano custa apenas o tanto de energia que ele deveria custar para o número de neurônios, pontua a Profª Suzana Houzel.

Embora se conheça muito sobre o cérebro, o certo é que tem muita coisa ainda faltando descobrir, principalmente no que diz respeito ao fato de ainda não entendermos como é que tudo funciona junto. Já se tem uma ideia sobre o padrão de conexões, exceto como é exatamente o funcionamento bem coordenado das várias partes do cérebro e, ao mesmo tempo, como disso surge essa coisa coesa e única, que dá pelo nome de, ser humano.

Suzana Houzel está escrevendo mais um livro, onde a base de sustentação é a afirmação de que se a unidade do funcionamento do cérebro é o conjunto de neurônios, quanto mais neurônios você tem, maior deverá ser a sua capacidade de processar informação. Sobre essa equação, a cientista diz: Optar por um número, nessa capacidade, é outra história. Mas, em princípio, se continuarmos com a teoria mais genérica que diz que quanto mais neurônios você tem, mais unidades de processamento você tem e mais capacidade de processamento de informação você tem, é, comparativamente, como colocar mais chips no seu computador. Agora, o que é importante – e eu tomo cuidado de chamar de capacidade cognitiva -, é que isso não se traduz instantaneamente em habilidade cognitiva. Capacidade é quando você consegue e tem os meios de fazer algo, enquanto que habilidade é quando você, de fato, consegue fazer algo. E quando se fala nas habilidades extraordinárias do ser humano, estamos falando do ser humano que cursou escola, universidade, que tem uma profissão, que teve experiências que desenvolveram as suas capacidades… Porque, quando nascemos, não temos nada disso. Você tem capacidades, mas habilidades ainda não. Aí tem uma outra história sobre transmissão cultural de tecnologias… de desenvolvimento de tecnologias que, claro, dependem de você ter capacidade para fazer isso. Enfim, a história fica mais complicada, pontua Suzana Houzel.

Vale à pena ser cientista no Brasil?

Suzana Houzel é conhecida pela sua frontalidade e sinceridade quando o assunto é o apoio à pesquisa que se faz no Brasil. Na opinião dela, não vale a pena desenvolver ciência no Brasil, até porque quem escolhe seguir essa carreira não é levado a sério, inclusive antes mesmo de ser cientista. Motivo principal – os professores não são valorizados. Para a nossa entrevistada, o Brasil não tem a cultura de valorizar o conhecimento, de valorizar a pessoa que transmite conhecimento, e muito menos a pessoa que gera o conhecimento. O cientista brasileiro tem que ser mágico e malabarista, porque tem que adquirir várias habilidades que nenhum cientista no mundo imagina que vai precisar. Você tem que ser agente de viagem, contador, importador, especialista em informática, bombeiro hidráulico e eletricista, só para dar conta de manter um laboratório funcionando, porque a infraestrutura no Brasil é muito precária, lamenta Suzana, que acrescenta que o grande segredo para que as coisas andem para frente é a paixão que o cientista tem pela sua profissão, pela ciência.

Por outro lado, Suzana Houzel afirma que o público – a sociedade – tem ainda uma fantasia relativamente ao conceito de que o cientista deve ser um sacerdote e que não precisa ganhar dinheiro. É feio um cientista pensar em ganhar dinheiro no Brasil. Porquê? Se você é médico, você não faz o que gosta? Se você é engenheiro, não escolheu fazer o que você gosta? Então qual é a diferença? Porque o pobre do cientista carrega essa cruz? Na Europa, por exemplo, já existe uma valorização muito maior do cientista, do professor… Veja aqui no nosso país, o quanto é difícil você encontrar uma pessoa que, hoje, escolha seguir uma carreira de professor. Você se torna professor porque não conseguiu outra coisa, até porque o salário é terrível. Eu tenho chamado a atenção dos jovens para isso. Vários colegas meus me detestam por isso, mas os jovens precisam saber que, se você quer ser cientista, tem que saber que quando se formar e conseguir o seu primeiro emprego como jovem recém-graduado, ganhará mil e duzentos reais de bolsa – não é salário!!! -, sem direitos, enquanto seus colegas que se formaram em engenharia química ganham, no mínimo, seis mil reais por mês. Se um biólogo ou biomédico se tornar perito da polícia, o salário de entrada é seis mil reais. Então, abrir mão de alguma coisa para se sujeitar a uma bolsa de mil e duzentos reais por dois anos de mestrado, depois a uma bolsa de dois mil reais pelos próximos quatro anos do doutorado e depois a uma bolsa de quatro mil e cem reais para mais quatro anos de pós-doutorado, enquanto você já tem seis anos de formado? Isso é interessante para quem? Eu acho que a gente começou a ver os sinais de uma tomada de consciência, porque está ficando cada vez mais difícil conseguir estagiários em iniciação científica para os laboratórios. E os que começam no estágio tendem a abandonar muito rápido, enfatiza nossa entrevistada.

Em paralelo a esse cenário descrito por Suzana Houzel, tem ainda a inevitável fuga de excelentes mentes para o exterior, que, segundo a cientista, ironicamente o governo, através do programa Ciência sem Fronteiras, tem estimulado. Eu sou contra esse programa: a forma como ele foi implementado está desviando recursos da pós-graduação e fazendo a coisa do jeito errado, mandando o aluno de graduação para o exterior, ao invés de importar jovens cientistas pós-graduandos e pós-graduados. Mas, enfim, a parte que me diverte é a ironia de que o governo, ao pagar para enviar esses jovenzinhos de graduação para o exterior, aqueles que levam essa oportunidade a sério, aproveitando-a de verdade, estão descobrindo como a coisa é diferente lá fora. Vão voltar para cá, olhar a realidade e se dar conta de que, se quiserem fazer ciência, têm que ir embora deste país o mais rápido possível, afirma Suzana Houzel. Para a nossa entrevistada, o potencial está aqui, no Brasil, com jovens cientistas com enorme disposição, muita criatividade e grande jogo de cintura. Os poucos brasileiros que chegam ao exterior e que conseguem alcançar e produzir alguma coisa são super bem vistos como pessoas que conseguiram dar a volta por cima, apesar das adversidades, e como pessoas criativas que veem problemas diferentes, que olham para um problema já procurando alguma solução… Quem consegue dar certo, acaba sendo bem valorizado, lá fora é claro!, comenta Suzana Houzel, acrescentando que ficar no Brasil está cada vez mais complicado, difícil, desestimulante e cada vez mais frustrante. Eu voltei ao Brasil com idealismo, com vontade de fazer a diferença e de fazer alguma coisa inovadora, mas o estímulo para continuar no Brasil é cada vez menor. Chega em um ponto onde eu sou obrigada a me obrigar a pensar que não é para eu continuar aqui… não de qualquer jeito.

Para os jovens estudantes, a Profª Suzana Houzel deixa uma mensagem: O mais importante é que eles se deem à oportunidade de descobrir do que realmente gostam. Quando comecei a fazer biologia, há 25 anos, fazer ciência já era uma má ideia. Mas, ainda assim, os meus pais me apoiavam e diziam: “Se é disso que você realmente gosta, vai em frente, porque sempre tem lugar para quem é realmente bom”. E a maneira de você ser realmente bom é, sobretudo, fazer o que realmente gosta. Esse lado continua e acho que vai sempre continuar sendo verdade. O cientista tem que ser alguém que é apaixonado pelo que faz, por causa do próprio “fazer ciência”. Então, há que se ser extremamente motivado para dar conta disso. O primeiro desafio para o aspirante a cientista é justamente descobrir do que realmente gosta. Achou? Aí o passo dois é descobrir os meios de viabilizar isso, conclui nossa entrevistada.

(Rui Sintra – jornalista)

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