Pesquisa e Inovação em Medicamentos no Brasil: Os desafios para reduzir nossa dependência externa
O programa “Ciência às 19 horas” retomou sua atividade neste ano de 2012, recebendo a visita do Prof. Dr. João Calixto, docente e pesquisador do Centro de Ciências Biológicas – Departamento de Farmacologia da Universidade Federal de Santa Catarina, que proferiu a palestra intitulada “Pesquisa e Inovação em Medicamentos no Brasil: os desafios para reduzir nossa dependência externa”, evento que decorreu pelas 19 horas, no auditório Prof. Sérgio Mascarenhas (IFSC-USP), no dia 20 de março.
Sabendo-se que o Brasil está entre os dez maiores mercados mundiais na área de medicamentos, existe algo contraditório, já que as empresas farmacêuticas nacionais ainda dependem da importação de princípios ativos, principalmente vindos da Índia, China e Coréia, na maior parte das vezes de origem laboratorial duvidosa. João Calixto concorda com essa afirmação, acrescentando que essa é uma questão que não é só aplicada à área dos medicamentos, sendo, também, um problema que acontece em diversas áreas relacionadas com a média e alta tecnologia:
São problemas que ficam claros quando se observa o déficit comercial brasileiro em quase todas essas áreas. Quanto à área dos medicamentos, que é considerada um bem essencial, envolve uma tecnologia altamente complexa e importante. As grandes empresas que fabricam medicamentos encontram-se sediadas, basicamente, em seis países, mas isso não justifica que o Brasil tenha ficado para trás nessa corrida ou nessa disputa. Extrair petróleo do fundo do mar é mais fácil do que fazer um medicamento: então, porque é que um dá certo e outro não? É tudo uma questão de política de Estado. Principalmente a partir da época do governo militar, foram definidas algumas estratégias consideradas como prioridades do Estado – Petrobrás, Embraer e Embrapa – e que duram até afora, com sucesso. Nesse período, quer a área de medicamentos, quer algumas áreas dedicadas à eletrônica não foram entendidas como prioritárias. Curiosamente, a ciência evoluiu bastante e, hoje, o Brasil ocupa uma posição estratégica em nível mundial, na área científica, mas não conseguiu acompanhar esse ritmo de desenvolvimento. Por outro lado, as empresas brasileiras, embora tenham parques fabris importantes, ainda têm um peso excessivo de empreendedorismo familiar, ou seja, trabalham em nichos de mercado, sobrevivendo, em grande parte, dos designados medicamentos genéricos, que foram criados há dez anos – refere o pesquisador.
Com efeito, e segundo a opinião do Prof. João Calixto, o Brasil possui grandes empresas farmacêuticas – principalmente no Estado de São Paulo -, com capital nacional, mas elas não possuem laboratórios de pesquisa, fazem pouca inovação e quase não se articulam com o meio acadêmico. Sabendo-se que o mercado brasileiro de medicamentos ocupa o sétimo ou oitavo lugar, no mundo, é curioso verificar que existe um déficit – recorde-se que o medicamento é um bem essencial, de caráter estratégico. A população vai envelhecendo, vai necessitando de mais cuidados, e o Brasil está com déficit na balança comercial na ordem dos US$ 11 bilhões nas áreas médica e hospitalar. Em comparação, a Índia continua a dar cartas, como explica o pesquisador:
Porque é que a Índia exporta toneladas de princípios ativos? Em 1996/97 houve uma pressão internacional muito forte através da lei de patentes e, nessa época, o Brasil tinha uma dívida externa monumental, quase impagável, e essa questão da lei foi negociada de forma quase impositiva, no nosso país. O Brasil aceitou a pior lei de patentes que se podia imaginar, com implantação imediata, mas retroagindo. Por sua vez, a Índia também foi pressionada, mas ela conseguiu condicionar a sua participação na lei até 2006, ou seja, ela ficou copiando formulações, chamou especialistas do exterior e teve tempo de se modernizar, transformando-se, por fim, num polo importante, jogando o Brasil lá para trás. Daí que tenha sobrado para as empresas brasileiras o conhecido medicamento genérico, mas de uma forma algo desarticulada, sem se ter tido determinados cuidados com sua fabricação. O Brasil importa os princípios ativos, mas depois existem problemas de qualidade do produto, incertezas nas dosagens, variação de preços, etc. Estamos numa situação difícil; somos a sexta economia mundial, um dos países no topo do desenvolvimento científico e, por outro lado, temos estas descompensações – comenta o pesquisador.
As relações entre empresas e universidades
Ao longo dos anos e até ao atual momento, as universidades e as empresas continuam de costas voltadas, cada uma falando seu idioma: não há uma interação plena, não há diálogos, apenas monólogos, fato que também tem contribuído para espécie de estagnação no setor. João Calixto não sabe se esse problema é uma causa ou uma consequência do que foi dito acima. Na opinião do pesquisador, para algumas pessoas a desculpa poderá estar no fato da ciência brasileira ser ainda muito jovem, mas segundo ele isso não é justificativa, já que a ciência pode ser jovem mas nascer moderna.
No Brasil, a ciência virou uma mercadoria de luxo, uma plataforma para enriquecer currículos, um status, em que as pessoas olham para o seu próprio umbigo e não estão nem aí para o país. Dizem, apenas “eu sou um cientista” e isso não existe em nenhum outro país. O cientista tem que estar inserido socialmente onde vive. A ciência não tem pátria, mas o cientista tem: ele tem um compromisso com seu país, que o está financiando. Essa falta de relacionamento e de diálogo entre universidades e empresas teve origem no falso conceito de que o cientista era dominado pelos interesses econômicos e produtivos das empresas; não há muito tempo atrás, qualquer grupo de pesquisa que trabalhasse com empresas era imediatamente rotulado por seus colegas como “mercenário”, e isso é uma ideia completamente retrógrada. O mundo mudou e a visão tem que ser abrangente, moderna e flexível e temos que deixar de construir clones de nós mesmos (alunos). Todo mundo quer estudar para fazer concurso público, para ter um emprego estável, ninguém, quer ser inovador, ninguém quer arriscar; o próprio cientista não quer arriscar. E, não tendo riscos, esta nova geração de estudantes, de doutores, vai trilhar os mesmos caminhos de seus mestres e esses caminhos a gente sabe onde vão dar – a uma ciência sem inovação. Para que as ideias, projetos e ações não fiquem amorfos, sempre tem que existir a crítica, salutar e pertinente, construtiva. Já reparou que nosso modelo científico e tecnológico não tem crítica há longos anos? Parece um clube que só quer ter elogios, onde todos querem dinheiro mas ninguém fala que é necessário mudar o rumo da ciência do país, que é preciso mais comprometimento, mais e melhor avaliação, mais inserção social, da necessidade de ter o setor produtivo do lado dos cientistas. O que todo o mundo quer é ter uma zona de conforto, escrever “papers” ou ver seu nome inserido em alguns, para falsamente engrossar seu currículo: só isso não basta – desabafa João Calixto.
A Burocracia do Estado
A burocracia das agências de fomento à pesquisa é um apêndice da burocracia do Estado e, por isso, muita coisa no Brasil foi feita para não funcionar. Esta humorística afirmação de João Calixto foi feita com um sorriso de tristeza, ao exemplificar, de seguida, casos verdadeiramente impensáveis:
Vou dar para você um exemplo relacionado com biodiversidade, onde os cientistas recebem dinheiro do Estado para desenvolver pesquisa e que, na sequência, esses cientistas estão proibidos, por lei, de aplicá-la. Temos casos de indústrias que foram recentemente punidas pelo Estado, porque fizeram experimentos sérios na área de biodiversidade, desenvolvendo produtos inovadores, na sequência de pesquisas subsidiadas. Assim não dá! Por outro lado, a burocracia do Estado cobre e protege muita incompetência de todo esse processo; contudo, a burocracia não é culpada de tudo o que acontece. Há no Brasil uma série de leis que justificam aquilo que não devia ser justificado e a burocracia é uma delas. Não se pode reclamar que não existe dinheiro. Existe e muito! Só que o dinheiro que é investido não é proporcional aos resultados que se obtém; não há uma verdadeira estratégia nacional, uma política de Estado para as áreas de ciência e tecnologia – pontua João Calixto.
O futuro
Já que o Brasil não possui centros capazes de fazer inovação, o Prof. João Calixto foi desafiado pelo governo federal para ajudar a neutralizar o grande gargalo que existe na área de medicamentos, através da criação e construção de um centro, com padrão internacional, que seja capaz de fazer essa ligação. O desafio foi aceito, o centro está praticamente pronto, mas o pesquisador se confronta agora com algo inusitado:
Você não imagina o quão difícil está sendo apetrechar o centro com recursos humanos de alta qualidade. É um drama! Você chega à conclusão que, apesar do Brasil formar dezenas de milhar de doutores, não existe gente altamente qualificada nas áreas de ponta, ou seja, o país é obrigado a trazer especialistas de fora. As pessoas ficam assustadas, mas o certo é que se o país nunca fez medicamentos, como é que se resolve esse problema? Trazendo especialistas de fora para nos ensinar, para nos atualizar e modernizar. Isto é sério! Os cientistas perdem a noção da realidade, pois não saem de dentro da universidade e perdem o compasso – refere João Calixto.
Para o nosso entrevistado, o futuro não vai ser fácil, até porque o país está adiando muitas decisões que já deveriam ter sido implantadas há pelo menos dez anos. Para o nosso entrevistado, o Brasil está formando doutores clones de seus mestres e a tendência é perpetuar procedimentos:
A área de Ciências Exatas está déficit no país e isso é altamente prejudicial ao desenvolvimento nacional. O país tem que alterar rapidamente o rumo, mas essa mudança de quadrante não vai agradar a muita gente, especialmente aos políticos. Estamos enviando milhares de estudantes para o exterior, através de bolsas de estudo, por forma a se capacitarem, e isso é extraordinariamente positivo, mas levanta uma questão: para que universidades é que esses estudantes e pesquisadores estão indo? Elas são de qualidade? Quando esses estudantes e pesquisadores regressarem, qual será o retorno desse esforço nacional? Não seria mais eficaz e mais barato trazer gente de fora, altamente capacidade, para nos ensinar – como fez a China, Índia e Coreia? Só que os espaços que existem para se fazer estas discussões e reflexões são muito pequenos, ou simplesmente não existem. O futuro está difícil.
(Rui Sintra – jornalista)