Candido Portinari: Do Cafezal à ONU
O dia 19 de março do corrente ano ficou marcado por mais uma edição do programa Ciência às 19 Horas, uma iniciativa que decorreu, como habitualmente, no Auditório Prof. Sergio Mascarenhas, no IFSC, tendo como palestrante o Prof. João Candido Portinari, docente da Pontifica Universidade Católica do Rio de Janeiro e, simultaneamente, fundador e diretor – geral do Projeto Portinari, que desenvolveu o tema intitulado Candido Portinari: Do Cafezal à ONU.
Sair pelo mundo, divulgando o trabalho de um dos maiores artistas plásticos nacionais, não é fácil, tendo em conta, até, que esse périplo já dura há cerca de trinta e quatro consecutivos e que a primeira palestra proferida por João Candido Portinari data de 1980, como explica o palestrante: Na época, eu não tinha as imagens e não tinha sido feito o levantamento da obra; tínhamos poucas coisas e os equipamentos eram antidiluvianos para os parâmetros atuais. Só para se ter uma ideia, eu levava comigo catorze malas, com projetores de slides, torres etc. Eu tinha uma picape e, então, colocava todo esse equipamento lá e ia dirigindo do Rio de Janeiro a Porto Alegre. E foi assim que percorri o Brasil inteiro dessa forma. Essa foi a primeira face do Projeto Portinari. Não havia outra maneira de conhecer o Projeto se não fosse dessa forma. E, naturalmente, em cada lugar que eu ia, sempre haviam jornalistas interessados em bater um papo para, depois, serem publicadas matérias, e foi assim que as pessoas, o público, passou a ter conhecimento do projeto. A sensação que tenho é de orgulho muito grande, sinto-me orgulhoso, sem falsa modéstia, sabe? Toda a minha equipe faz um trabalho muito grande.
Quando João Candido Portinari fala de sua equipe, sempre se manifesta na sua expressão um semblante sério; isso porque, segundo o nosso entrevistado, o Projeto Portinari esteve algumas vezes em risco – na UTI, como ele próprio afirmou. Principalmente por questões financeiras, sempre João Portinari sempre lutou com muita dificuldade e, por isso, sua equipe nunca teve um número certo de colaboradores, até porque as pessoas sentiam-se inseguras do ponto de vista financeiro:“O máximo de pessoas que eu consegui ter foi o que tenho agora, porque o projeto “Guerra e Paz” tem uma logística muito complexa e exige uma equipe muito maior. Hoje, temos cerca de treze pessoas colaborando, mas tempos houve em que apenas consegui ter seis ou sete. O Projeto Portinari nasceu na universidade e foi criado na universidade – algo raro para projetos culturais. Projetos culturais, no Brasil, por alguma razão que não sei explicar, estão longe das universidades: só que nós não estamos longe delas. Nós nascemos nos departamentos de ciência e tecnologia: por exemplo, eu era da matemática. Então, foi muito importante esse convívio com colegas da física, da informática, da matemática e de outras áreas do conhecimento, porque deu ao Projeto a oportunidade de trazer inovação para sua execução, praticamente na hora em que a inovação estava sendo feita. Quando você está na universidade, você passa o dia todo com os colegas e quando olha para o lado você está sentado ao lado de algum deles e pergunta, “o que você está fazendo?”; e ele responde: “eu descobri uma coisa para tratar imagens, fazer o processamento de imagens...
Contudo, o Projeto Portinari conseguiu beneficiar-se do desenvolvimento da ciência e tecnologia nestes últimos trinta anos e, se fizermos uma pequena reflexão, o certo é que o Projeto tem a mesma idade que a indústria de microcomputadores. Quando tudo começou não existia escâner, base de dados, microcomputador, enfim, era tudo na mão; as fotos que se batiam eram de filme, slides, e então seus responsáveis percorriam o mundo inteiro fotografando a obra do Portinari e o que resultou disso foi o único registro visual colorido da obra dele em slides, que sabemos que são perecíveis e que vão se estragando, irremediavelmente: Ficávamos em pânico ao pensar de como poderíamos preservar aquilo: só que a ciência e tecnologia trouxeram a resposta, que é a digitalização em alta resolução, o tratamento cromático, compactação,… Todas as técnicas de tratamento de imagens foram necessárias. Um dos grandes problemas era como levar a obra do Portinari para todos, em qualquer lugar no mundo, e aí… surge a internet. Como íamos imaginar que ia surgir a internet quando começamos? – refere nosso entervistado.
Desde o início do Projeto Portinari, foram levantadas mais de cinco mil obras, percorreram-se mais de vinte países da Europa, Oriente médio, das três Américas, visitando obras e proprietários, fotografando obras, pegando informações. E, nesse longo caminho conseguiu-se levantar, também, cerca de trinta mil documentos, entre eles, por exemplo, seis mil cartas que Portinari trocou com os grandes expoentes de sua geração, como Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Oscar Niemeyer, Vila Lobos, Mário de Andrade, e esse fato não é tão conhecido assim: ele, além de pintor, conviveu intensamente com sua geração, com abundantes trocas de ideias e de opiniões sobre os mais variados temas, principalmente relativas a preocupações de âmbito estético, artístico, cultural, social e político: tudo isso estão refletido nessas cartas.
A divulgação dessas cartas vai muito além do que todos nós possamos imaginar, como refere João Portinari: Essa divulgação vai muito além de Portinari, até porque essas cartas nos revelam como era o Brasil nessa época, o que aquela gente pensava a respeito de seu país, quais eram os caminhos estéticos, políticos, sociais, tudo. Então, além das seis mil cartas, existem ainda doze mil periódicos de jornais e revistas, de 1920 até hoje. Fizemos um programa que entrevistou setenta e quatro contemporâneos de Portinari, resultando em cento e trinta horas de gravação que, agora, estudantes e pesquisadores descobriram e estão começando a tirar benefícios disso. Temos também cinco mil obras – não as originais, mas o documento do levantamento -, que se traduzem em todas as informações que conseguimos recolher, mais as imagens, coloridas e em preto e branco. Temos mais de mil e duzentas fotografias de época, monografias, textos avulsos, cartazes,… Temos muitas coisas do que chamamos de “memorabília”. Todo esse acervo foi o responsável pelo grande passo que demos agora, ao lançar o Portal Portinari. Tínhamos o site, mas ele não tinha uma interface muito amigável. Para uma criança da rede escolar, por exemplo, ou para um professor, não era muito amigável. Isso agora é diferente e está fazendo o maior sucesso entre as crianças.
As pessoas dizem que o Brasil não tem memória, que as pessoas não dão valor à cultura. Contudo, o nosso entrevistado desmistifica a frase, salientando que o Projeto Portinari teve a devida solidariedade da sociedade brasileira: Não importa a cor política da pessoa, não importa nada. Nós tivemos essa solidariedade de todos os setores da vida brasileira. Vou dar três exemplos, só para se ver a loucura que foi isso. Uma grande empresa de transportes aéreos, que era a Varig, durante décadas deu as passagens de graça para pesquisador e fotógrafo percorrerem o Brasil inteiro fotografando as obras. Eu duvido que a Airfrance ou a Panamerica fizessem isso em prol da memória de um artista europeu ou americano. Nunca ouvi falar de nada igual. E não somente a Varig fez isso, como também enviou telex para todas as agências Varig do mundo inteiro, pedindo que em cada lugar a agência Varig funcionasse quase como uma sucursal do Projeto Portinari, e identificasse quem tinha obras ou qualquer documento sobre Portinari, mandando organizar a logística das visitas e todo o apoio indispensável. O Ministério das Relações Exteriores mandou uma circular para todas as missões diplomáticas brasileiras no mundo inteiro, pedindo, também, que cada local apoiasse o Projeto. Isso foi valiosíssimos para nós! E o terceiro exemplo veio da maior rede de televisão do país – Rede Globo – que, com o apoio da Fundação Roberto Marinho, fez uma campanha de chamadas nacionais e regionais, em todos os horários, inclusive nobres, que durou quase quatro anos, pedindo que, se qualquer pessoa tivesse qualquer documento sobre Portinari, que entrasse em contato conosco. Os Correios nos deram a caixa-postal 500, um número fácil de lembrar. Essa caixa-postal recebeu mais de três mil cartas do Brasil inteiro. Isso tudo aconteceu há trinta anos. Então, o brasileiro, quando acredita em algo, mobiliza-se; eu acho que todos eles acreditaram no Projeto Portinari, pois estamos falando de um artista muito amado, que diz algo fundo na alma dos brasileiros, pois todos sabem que ele retratou o Brasil, o brasileiro, a alma do país, e de uma maneira muito autêntica, crítica e emocionada de todos os aspectos do país. Eu acho que não se conhece no mundo inteiro nenhum pintor que tenha pintado mais um país do que Portinari pintou o seu. Portinari pintou os temas sociais, os temas históricos, religiosos, o trabalho no campo e na cidade, a infância, os tipos populares, a festa popular, os mitos, a fauna, a flora e a paisagem, ou seja, ele fez um grande retrato de uma nação. Isso é uma coisa que o Brasil agora está começando a ter: uma autoestima muito maior do que tinha no passado, quando achávamos que tudo que vinha de fora era melhor do que o nosso. E agora isso está mudando: estava na hora de mudar…
O Projeto Portinari está aí, para que todos o possam conhecer e transmitir seus valores, principalmente os jovens, e essencialmente nas escolas. João Candido Portinari rematou esta entrevista com uma frase profunda proferida pelo eterno compositor polaco Frédéric François Chopin, que ilustra a sensibilidade e devoção do nosso convidado do Ciências às 19 Horas:
A arte é o espelho da pátria. O país que não preserva seus valores culturais jamais verá a imagem da sua própria alma. Se você não vir a imagem da sua própria alma, você não se conhece e, você não se conhecendo, você não pode ir a lugar nenhum.
Entrevista: Tatiana Zanon – Edição: Rui Sintra (jornalista)